7.11.07

Carta

Caro Rodrigo Guedes de Carvalho,

Eu tenho inveja das tuas palavras, dessas malditas palavras bem-articuladas, que expressam tudo o que sinto e não consigo reproduzir. Queria assassiná-las, as tuas palavras, a tua poética prosa que não me deixa dormir, que me suga toda a energia.

Tenho inveja como tenho de outros, daquele cujo livro perdi ou emprestei, não sei ao certo, do outro que ficou comigo na estante, ao término de uma relação que nem chegou a ser. Porque eu não sei não ser clichê, não sei dizer como tu sabes, da dor e da verdade disso que sentimos, quando enlouquecemos aos bocados, quando enfrentamos nosso próprio fim e nos colocamos a pensar em tudo o que deixaremos no caminho.

Eu queria também saber manejá-las, sem precisar consultar os índices para confirmar sua existência, sua grafia. Gostava de saber, como dizes em tua língua, gostava de saber falar do amor como tu, como Ian, como Murakami. Essa forma delicada de expor aquilo que é tão primitivo em nós, que provoca tantas dores e exige tanto. Gostava mesmo de saber escrever.

Vida no asfalto cor de sangue

Não se trata do texto inacabado, que deixamos à sombra porque não encontramos palavras adequadas ao nosso pensamento. Não se trata da pilha de coisas que se acumulam à espera do dia em que alguém as organize. Não se trata do amor mal-resolvido apenas, que não tivemos coragem de tirar a limpo. Não se trata do tanto de tarefas à nossa espera na mesa do trabalho, de coisas extraviadas a esmo e para sempre, da preguiça de escovar os dentes, de contatar aquele amigo distante. Das discussões sem objetivo em rodas conhecidas, da repetição enfadante do cotidiano. A vida trata, sobretudo, do imponderável. Do trânsito no horário pouco provável, da pressa que vem em seguida, do atraso inevitável. Do estrondo no fim de tarde da rua, do choque entre dois metais e sangue no asfalto. O imprevisto. Não é possível antecipar a vida. Ainda que se tenha tudo programado, organizado, perfeitamente estabelecido. Ela vem, faca em punho e muda para sempre todo o percurso. Sangue no asfalto.

“Fazer isto, depois aquilo. A suburbana idéia de que há um tempo para tudo e que nos devemos resumir. Está na altura de, está na altura de. Como se cada passo fosse fundamental para o seguinte. Como se não pudesse haver outro caminho.”