23.10.06

Despedidas

Ela afundava os pés na areia e depois chutava de levinho para que os grãos voassem raso. Esperava olhando no horizonte todas as ondulações, para reconhecer entre elas a prancha voadora que foi admirar. Encostava os cotovelos na areia, afundava o pé e esperava. Sabia que aqueles minutos eram os últimos de um sonho, em uma ilha qualquer do Pacífico sempre há espaço para os delírios.
Acendeu o último cigarro antes de embarcar, o vento quente de todas as ilhas abraçava seu corpo espatifando-se nas lágrimas. Há menos de uma hora pensou em deixar tudo para trás e firmar raízes em outras areias. Encostou a cabeça na janela do avião, enquanto as lágrimas, aos milhares, embaçavam a vista do arquipélago.

Chovia muito e as nuvens não anunciavam o amanhecer das ruas portenhas. Não queria pegar o táxi, não queria partir. Depois do beijo, foi decorando no automóvel velho o endereço para onde enviaria cartas por mais de um ano, sem nunca conseguir voltar. E lembrando da frase no espelho, La revolución latinoamericana. Quem dera tivesse ocorrido.

Os amanheceres são sempre indizíveis. A luz azulada se tornando amarela e por fim branca. Mas o dia amanheceu nublado, cachorros latiam pelas ruas largas e abafadas do Norte. Era o mundo compelido por mais uma partida, mais um coração rasgado. Você promete não me esquecer? Prometo, para a vida inteira. Depois, dedicou um poema com sotaque.

Acabei de chegar. Eu imaginava... Estou com uma dor no peito, nó na garganta, tudo junto. Só queria falar contigo, não acredito que ligaste no mesmo instante de meu pensamento. Também estou sentindo tudo isso. Já é saudade? Onde você está? Ainda lá, no espaço entre a duna e o mar. Aqui está tudo cinza. Eu volto logo. Eu espero. E foi também em um dia de muita chuva no Rio de Janeiro: a última vez que isso aconteceu comigo, eu casei. Sorriso encabulado. As coisas não dão certo quando distantes.


De novo, a chuva. Tempestade. Saiu do mar, jogou a prancha em uma caçamba desconhecida que daria uma carona até a entrada da praia, lá no mangue. Enquanto chacoalhava na estradinha de terra, pensava nos olhos e cabelos de anjo de dois dias atrás. Desceu da caçamba, segurou a prancha e foi agradecer o motorista. No banco ao lado, os olhos, o anjo. Foi a última vez que se viram.

Deixou uma carta extensa, com todos os dizeres do mundo que havia guardado para a ocasião. Ele não quis levá-la ao aeroporto. Pressentimento. Ela nunca mais voltou.

Voy a vivir en otro lugar. ¿Pero vas ahora, vas cuando? Esta semana. Quería decirte que es muy especial para mí. Me gustó conocerte, si vuelvo te encuentro. Nada, nada. No digas nada que así pasa mas rápido. Estaba correcto, pero no lo sabia.

Sentada na pia, ela o observava em seu discurso ininterrupto de justificativas. Ás vezes parecia sair de si, talvez para não se acostumar a acreditar no que escutava. Com as costas da mão, enxugava as lágrimas que vinham em um crescendo e sobre as quais não tinha controle. Não poderia ser verdade, era um pesadelo. Um mês depois, foi buscar as últimas coisas que deixara no apartamento. Chegou a tomar uma cerveja com alguns amigos de outrora, para mais tarde ouvir: esquece de mim. Não te amo mais. Você compreende? Acabou. Compreender, não compreendia, mas entrou no carro mesmo assim. Não era possível, uma hora as lágrimas têm de secar. Demorou um semestre, mas elas, as lágrimas, se foram.

Então é melhor assim. Eu fico com os CDs de jazz e você com os livros do Murakami?

Então, eu voltei e essa viagem me mostrou outras perspectivas sobre eu mesma. Acho que preciso ficar um tempo sozinha, focar no trabalho, me encontrar. Você tem tudo para ser o amor da minha vida, mas não é. Eu bem que tentei me apaixonar. Tudo bem, eu entendo. Mas podemos ir ao cinema essa semana? Você já se acostumou com o fuso?

A chuva são as lágrimas do universo nas despedidas.