21.8.06

JANUÁRIO/ POS FAULKNER

Todos os meses há anos, ela passava por isso, indo fundo, fundo, fundo até que uma pedra batia na sua cabeça e recomeçava todo o círculo. O gosto da manga, estranho gosto, como gosto de coisa vencida, passada. Repetição. Repete comigo, a moça miúda dos olhos arregalados dizia. Repete, vai. Daí você pode ir para casa. E-le-fan-te. Man-ga. Por que você ao menos não tenta, não se esforça? Daí pode ir para casa, mas assim, se não cooperar, será difícil nos entendermos. Faço o melhor que posso. A pedra vem vindo, a pedra vem. A colocaram de frente para a janela, ampla. Seus olhos percorriam todos os mínimos detalhes, sempre os mesmos. E, mais à noite, quando o silêncio rasgava aquela imensidão da sua mente, o obsceno a que ele a submetia. Violentas noites, ele a apertava com força, os olhos assustados pedindo socorro naquela imensidão. De novo a pedra, o círculo.
Em algum lugar do mundo alguém mais passava por isso. Tinha de ser assim. Ele não possuía a coragem dos bravos, e não havia outra maneira que não subjugar o outro, para conseguir favores. Mas dela, o que conseguiria dela? O mesmo que todos os demais, prazer, fúria entredentes.
Então chegou o dia dela partir, eles encontraram um hospital que a aceitasse, um centro para autistas. Ela o viu aproximar-se: você vai embora, então. Sua retardada. A segurou com força pelo braço: sua retardada, ao menos você não fala. Se pudesse falar, o que falaria?
Januário entrou no ônibus. O trocador, um senhor baixinho e careca, menos dentes do que deveria, pediu a passagem. Desce aonde, moço? Desço em São Caetano. Já em Pernambuco? É, em Pernambuco. Que diferença fazia, tudo aquilo era igual, seca, sol, poeira, morte, sertão. Ele sentia-se especial, ia fazer um trabalho com os pobres sertanejos, ajudar a construir um mundo melhor. No meio da noite, no chacoalhar do ônibus, ouviu o grito calado de sua irmã autista. Acordou sobressaltado, suava. E se alguém descobrisse toda a farsa e hipocrisia, suas mentiras? Temeu por mais de hora ser encurralado, descoberto, julgado. O ônibus parou. Romeiros, brasileiros comuns, estudantes, catadores de caranguejo amontoavam-se para comer um pedaço de tapioca, tomar uma dose de cachaça e seguir em frente. Januário ficou encostado à porta do ônibus, observando a multidão e a fumaça de seu cigarro. Lembrou dos olhos assustados de Luzia, pedindo socorro.
Então vai me dizer que você nunca amou ninguém?
Como você assim, não.
Verdade?
Verdade. Por isso eu digo que não tenhas medo, é novo para mim também.
Mas eu tenho. Medo. Como vou saber que é verdade?
Não vai saber. E a encostou contra a parede, segurou seus braços com força. E viu os olhos assutados de Luzia. Maldita retardada que me persegue até aqui.
Januário entrou na sala. As pessoas levantaram-se para aplaudir. Enquanto procurava o texto de agradecimento ao prêmio por tantos anos dedicados ao trabalho com os sertanejos, encontrou os olhos de sua irmã na platéia. Todos os olhos eram os olhos dela, os olhos dos sertanejos e de todas as mulheres de sua vida.
Januário entrou no quarto. Estava escuro, tateou para acender a luz. Sentado, chorando, pediu perdão. E descarregou a arma.
Januário estava nas manchetes de jornais, na TV ao vivo. Matara os olhos que o perseguiam, o fantasma. Matou Luzia com uma bala só, dentro do centro de reabilitação. Seus olhos, dessa vez, nada diziam.