30.1.08

soir dans paris


"O cigarro apertado nos dedos miúdos, fazendo círculos ansiosos no frio da noite vazia. Paris não tinha trilha sonora na madrugada. Sentiu a centelha na bufanda, moveu-se tão rapidamente a ponto de não perceber. Agora estava ali, de frente para o cemitério escuro, recordando-se do exacto momento em que decidira tudo. Chovia, as botas tinham as pontas molhadas e ela fazia círculos no cimento conhecido de todo dia, enquanto engolia as tragadas e as lágrimas. Naquele milésimo de instante decidira. Não era mais por não querer, era por não saber se ainda queria. O filho, o marido, a coisa toda.

Uma outra alma, que não era do cemitério, passou apressada escondendo-se do frio e do sereno. Pareceu escutar um bon soir; não respondeu. Paris. Sem filho, sem marido. Apagou o cigarro e, encolhida, meteu-se pela lês gaites, até a porta do cubículo que emperrava, a porta e o cubículo. O vizinho italiano escutava música alta, ele sempre metido nessas nostalgias de não saber por que se vai ou porque não se fica. O caso é que são coisas diferentes, decidir ir e não conseguir ficar. O travesseiro não amenizava os pensamentos e as vozes internas, todas na língua mãe. Sonhava com a dançarina do flamenco, com os olhos furtivos e paredes árabes. A ela, lhe parecia que as coisas outras, que não estavam a seu alcance, eram mais interessantes agora. Em outro momento não foram.

Exausta, vencida pela insônia, pelas lembranças, pela ansiedade a galope, levantou e abriu o vinho que guardara para um momento especial, que nunca veio. Decidiu pintar as unhas de vermelho sangue e fazer disputa ao vizinho italiano com Revolver, sua canção francesa favorita.

Tinha esmalte espalhado por todo o tapete quando levantou com o estouro de uma lâmpada. Limpou o que restava no solo de madeira e foi empacotar as coisas. Já eram quase cinco e o táxi chegaria a qualquer momento. Não em Paris, mas ela preferia pensar que sim.

Quando finalmente entrou no avião, conseguiu pegar no sono. E no sonho chorou em francês e viu ruas, boinas, bufandas, garrafas de vinho e um quadro amarelo do Pompidou. Quando aterrissou, era o filho e o marido. E ela já tinha decidido tudo outra vez. Paris. "


Da lagarta na perna, Última noite em Paris