22.7.06

Surrealidade corporativa


O mundo em fragmentos. É assim que eu o vejo, o mundo, em fragmentos. Desde essa hora de manhã, quando ele, o temido moço que trabalhava no departamento de Recursos Humanos e com o qual eu falava sempre, entre as suas inúmeras reuniões que o sugavam, como aqueles trituradores de pia de cozinha sugam as cascas da laranja que a preguiça impede de levar ao lixo. Nesses parcos minutos em que ele se mostrava absolutamente entediado com minha conversa sem pé nem cabeça e o meu questionamento ideológico – na verdade nem tanto assim – sobre o papel de cada um de nós nessa engenhoca estranha a que chamávamos de fábrica, cometi os maiores erros que um sujeito que preza a sua burocracia profissional e o seu futuro, pode cometer.
O fato é que o temido moço veio conversar comigo, aquelas conversas a portas fechadas, para que ninguém na empresa saiba o que se passa. Sorrateiramente todos te olham de canto, o que será que fulano veio conversar? Vai ser demitido, bradam as vozes da racionalidade pura das companhias. Seu comportamento não é adequado, creio que deveria refletir sobre os seus talentos, trabalhar mais em cima deles, e buscar se enquadrar. E era eu no quadrado.
Um escritório pode ser um ambiente propício para o desenvolvimento de neuroses de todo o gênero, várias pessoas que jamais trocariam meia palavra fora dali, convivendo em espaços exíguos todo o dia – e às vezes noites inteiras. Os sentimentos humanos deixados de lado, porque no quadrado eles não cabem, insistem em aflorar nos momentos inadequados, quando você, com o saco de cheio de trabalhar no mesmo projeto que não leva a nada há semanas, deixa a ira subir a cabeça e inicia uma seqüência bem articulada de palavrões e observações maldosas sobre o departamento inteiro, sobre a moça do café, os psicólogos corporativos até chegar a presidência, parando antes na diretoria.
Os chefes têm um comportamento sarcástico, que transita entre a culpa de não conseguir fazer com que você faça aquilo que ele quer e a mesma culpa por não conseguir sozinho as informações que você consegue. Com aquela cara de quem não dorme há uma semana, e não come há pelo menos um mês, ele repete sem parar o mesmo discurso há anos, o de que é preciso exceder os seus limites, se superar, trabalhar em equipe, fazer MBA, ter equilíbrio emocional, qualidade de vida e, é claro, adivinhar o que passa na cabeça dele, por telepatia, porque nós estamos aqui para trazer melhores resultados e desse jeito não dá para trabalhar.
O temido moço me categorizou, o problema não é da empresa é seu, precisamos de atitude com equilíbrio. Mas o nosso maior foco é a diversidade humana, desde que a diversidade seja igual para todo mundo. Eu não respeito você, você não me respeita e vamos todos encher a cara em um happy hour ridículo em que as neuroses e opiniões contundentes de cada um serão usados como arma na hora de decidir quem vai ser promovido.
Hoje o gerente do departamento que parece uma repartição decidiu colocar uma placa na porta da sala: aqui estão proibidos os palavrões, opiniões divergentes e idéias que me façam pensar. Todo o mundo passou em frente e ninguém perguntou nada, porque a doideira corporativa é genialidade de acordo com o nível hierárquico.
Eu me pergunto se o temido moço às vezes se pergunta porque ele trabalha com Recursos Humanos se ele no fundo odeia os funcionários que de vez em quando decidem ser pessoas. Sim, há uma diferença crucial entre ser funcionário e ser humano.
Ela veio serelepe com seu sapato bicolor “made in New York” contar o quão íntima é do presidente da empresa, e como é fofa a sua amiga publicitária famosa e o editor do jornal de economia que ela nem conhece bem, mas que já é seu amigo há mais de três dias. A total indiferença do pacato funcionário da área de ações sociais, que senta ali perto, foi o motivo que faltava para fechar o tempo no departamento. Como alguém pode não me admirar, martelava a pergunta na sua cabeça de vento. O efeito foi em cascata: começou no analista que não programou direito a entrada do site no ar e acabou no estagiário incompetente que não consegue organizar os meus arquivos e passa o dia na Internet.
Nesse dia eu tinha ido trabalhar com umas pantufas roxas, bem modernas, e todo mundo ficou chocado. É proibido ir trabalhar de pantufas, dita a revista especializada em etiqueta no escritório e em como se tornar um herói e ser disputado por mais de 15 empresas ao mesmo tempo.
As pantufas, tenho certeza, foram a gota d’água para selar a minha insanidade no saudável ambiente dos cafezinhos e fofocas de corredor em que todo mundo fala de todo mundo e ninguém fala de ninguém e determinar o passo seguinte que salvou a minha existência precária. Daquele dia em diante, me tornei um vendedor de água de coco na Praia Grande, e já estou planejando montar um império corporativo com a ajuda de muitos livros de especialistas em recursos humanos ou não, com funcionários que não vão querer se enquadrar e que teimarão em vender a minha água com diferentes sabores, até que a mediocridade do meu cérebro decidirá, em um momento adequado, que eles não cabem mais no quadrado.
E assim as máquinas de assar gente vão rodando, sem maiores questionamentos, e o grande lance pra garantir o seu lugar ao sol é ser um profissional positivo que traga idéias e soluções e não problemas, mesmo que você não crie os problemas. Mas alguém tem de criar problemas, pensa pela segunda vez em dois anos o operador da linha de embalagens de iogurte, para que outros possam solucioná-los. Na verdade ser um criador de problemas e tão necessário quanto ser um solucionador, a diferença fica por conta da promoção e da demissão, estende-se o raciocínio abstrato, enquanto o iogurte coalha na embalagem mal embalada. É quase um altruísmo ser criador de problemas, porque assim você ajuda alguém que quer ansiosamente solucioná-los, em geral aquele jovem recém contratado cheio de esperança de que um dia vá se tornar o diretor da área que parece uma repartição. Até que ele comece a causar problemas para outros poderem solucioná-los, um dia chegará o ponto em que não se distinguirá mais o problema da solução e aí a empresa vai começar a perder dinheiro e depois de demitirem todos os operários causadores de problemas, ou não, vão contratar um profissional brilhante que apareceu na capa daquela revista especializada em etiqueta e também em como vender o seu peixe, segundo me contaram agora eles têm uma nova linha editorial, que inclui vender o peixe, o boi e a mãe também.
Um brinde ao sucesso! gritam todos felizes na festa de fim de ano em que o diretor daquela área importante que ninguém sabe o nome tomou um porre e decidiu se afogar na piscina.

1 Comments:

Blogger Alê S.A.L. said...

achei! Nossa, esse foi catartico!

19/9/08, 8:25 a.m.  

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